24/03/2013

David Hume e a crítica do princípio da causalidade


Todas as nossas ideias são cópias das nossas impressões. (D. Hume)

            Para David Hume (1711-1776), nossos sentidos oferecem-nos apenas percepções, as quais não são capazes de nos remeter a qualquer coisa parecida com um objeto externo: nossos próprios corpos nos pertencem, é parte de nós, o que quer que nos apareça como externo a nossos corpos deve estar fora de nós mesmos.
            O que nossos sentidos nos revelam não é uma existência corpórea propriamente dita, mas apenas um conjunto de percepções, aos quais nossas mentes, atribuem uma existência corpórea. O mesmo ocorre, também, com sons, sabores e cheiros. Ainda que sejam vistas pela mente como características contínuas e independentes, não parecem existir em algum tipo de extensão e, portanto, não podem ser percebidas pelos sentidos como exteriores ao corpo.
            Não é o fato de certa impressão ser considerada involuntária, nem sua força ou sua vivacidade que fazem com que ela seja considerada contínua e independente. Prazeres e dores, paixões e afecções, operam com mais violência, por exemplo, que ideias como figura, extensão, cor e som, mas sempre consideramos que existem apenas enquanto percepções.
            Acreditamos, assim, na causalidade ou a uma tendência criada pelo hábito?
            A necessidade causal existe realmente nas coisas?
            Para Hume, a necessidade é algo que existe no espírito, não nos objetos. Não existe nenhuma impressão autêntica da causalidade, exclusivamente acreditamos nela. Poderia parecer, então, que é apenas o hábito que nos leva a atribuir a certas percepções o caráter de continuidade e de independência que as caracteriza – para nossas mentes – como objetos externos. E se assim fosse, haveria, certamente, uma enorme semelhança entre o processo pelo qual atribuímos a certos objetos o caráter de contínuos e independentes e aquele pelo qual estabelecemos as relações de causa e efeito. Para Hume, esse definitivamente não é o caso. O hábito, além de ser o resultado da grande repetição de certas impressões, não pode, de maneira alguma, exceder a própria regularidade que observamos. Afirmar que o hábito é o único responsável pela crença na existência contínua, portanto, equivaleria a dizer que um hábito pode se formar sem corresponder a percepção alguma. E ainda assim, ao inferir a existência contínua e independente de certos objetos, pretendemos atribuir a eles uma regularidade maior do que aquela que observamos em nossas percepções. Ora, é bastante claro que jamais percebemos a regularidade em momentos em que não estamos presentes. Concluímos, então com a teoria Hobiniana, que o hábito não pode ser o único fator que explica a atribuição de continuidade e independência a certos objetos. Hume  invoca outro princípio que contribua para esse acontecimento. O que ele afirmará é que:
A imaginação governa todas as suas ideias e pode uni-las, misturá-las e variá-las de todas as formas possíveis. Pode conceber objetos fictícios em todas as situações de espaço e tempo. Pode colocá-los de certa maneira diante de nossos olhos com suas próprias cores, exatamente como se houvessem existido [...] é impossível que essa faculdade possa jamais, por si mesma, converter-se em crença. (HUME, p.66)
            O que a mente faz, então, ao perceber a coerência entre os vários objetos que percebe, é continuar seu movimento e tornar a uniformidade tão completa quanto for possível. Hume nos lembra que a questão não é se a mente forma alguma conclusão referente à existência contínua dos objetos. O problema reside no modo (grifo nosso) como a mente formula essas conclusões.
            Hume continua, afirmando que para estabelecer a existência da causa temos só dois meios: ou por uma percepção imediata da memória ou sentidos, ou por uma inferência a partir de outras causas.
            O empirismo de Hume surge, pois, como um ceticismo, pois, explicar a crença no princípio de causalidade denota recusar todo valor a esse princípio.    Não se pensaria que os filósofos empiristas fizessem tratados sobre a natureza humana. Mas é disso que trata a sua filosofia: esclarecer a dualidade empírica entre a Natureza e os princípios da natureza humana.
            Hume introduz outra distinção na classificação das impressões e das ideias: impressão de sensação e impressão de reflexão. As impressões de sensação ocorrem através de nossos órgãos sensoriais; as impressões de reflexão são derivadas de nossas ideias e são essas que interessam para o exercício argumentativo de Hume.
            As impressões de reflexão incluem as paixões, os desejos e as emoções.
[...] a simpatia entre as paixões e a imaginação mostrar-se-á talvez notável, quando observamos que as emoções despertadas por um objeto passam facilmente a um outro unido a ele, mas se misturam com dificuldade, ou de nenhum modo, com objetos diferentes e sem nenhuma conexão.(Hume,p.47)
            Quando a mente relembra a ideia, uma nova impressão de desejo ou aversão é produzida. As ideias são divididas entre aquelas produzidas pela memória e aquelas produzidas pela imaginação.
            Já a imaginação tem liberdade de transpor, recortar, transformar e combinar ideias em ordens quaisquer; tem o poder de distinguir ideias, separando-as. Hume faz disso o princípio da diferença ou da separabilidade: tudo o que é separável é discernível e tudo o que é discernível é diferente. Uma consequência da divisão entre ideias simples e complexas é que os componentes das ideias complexas são separáveis em elementos simples, possíveis de novas combinações pela imaginação. O espírito é uma coleção de ideias e essas ideias são a própria imaginação. Hume dá assim um novo papel à imaginação.
            A conclusão óbvia é que, no que depender apenas dos sentidos, todas as percepções são semelhantes no que diz respeito ao que nosso autor denomina a “maneira de sua existência”.
            Hume afirma que, nos casos de sons e de cores, também atribuímos uma realidade distinta e contínua aos objetos independentemente da razão ou de qualquer consulta a princípios filosóficos. Isso não quer dizer, é claro, que os filósofos de maneira geral não tenham tentado fornecer argumentos para defender que objetos existem independentemente de nossos processos mentais. O que ocorre é que, além de esses argumentos serem conhecidos apenas por umas poucas pessoas, “não é por meio deles que crianças, camponeses e a maior parte da humanidade são induzidos a atribuir objetos a algumas impressões, e negá-los a outras” (HUME , p. 129). Isso faz com que o vulgo e a filosofia estejam quase sempre em desacordo no que diz respeito a esse tipo de questão: enquanto os filósofos afirmam que tudo que aparece para a mente não é nada além de percepções (e, portanto, tudo que aparece à mente é descontínuo e dependente), o vulgo atribui independência e continuidade a tudo que sente ou vê.
            Para Hume, é impossível que os próprios sentidos, tomados em si mesmos, possam servir como justificativa para qualquer doutrina que se coloque a favor da independência ou da continuidade de quaisquer objetos. O resultado, como não poderia deixar de ser, é que nossa razão não pode nos garantir, de maneira alguma, a existência de objetos contínuos e independentes. Essa opinião é devida, portanto, única e inteiramente à imaginação, e é por isso que Hume passa a investigar de que modo ela colabora para esse processo. A ideia de uma existência contínua e independente deve surgir a partir da convergência de certas qualidades presentes em algumas impressões com certas qualidades da imaginação. E se dissemos algumas impressões, foi porque, como observa Hume, não são todas elas que nos transmitem essas ideias. Faz-se necessário, então, que comparemos as impressões a que atribuímos uma existência contínua e independente àquelas que vemos como perecíveis e dependentes de nossas percepções.
            O mais importante no empirismo não é a indivisibilidade das impressões? Pois bem, no empirismo não é o sujeito que pensa, pois não existe sujeito a priori. O sujeito não é algo separado do dado ou separado do mundo. O sujeito é o dado, é o fluxo do sensível, é a coleção de percepções ou imagens, que tomados por movimentos associativos, supera o dado, produzindo a natureza humana.
            A natureza humana é hábito, o hábito de adquirir hábitos.
            Hábito é espera, é crença. Não há certezas absolutas nesta espera.
            Há apenas uma crença, uma espera.
  
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS e BIBLIOGRAFIA
  
HUME, David. Investigação acerca do entendimento Humano. Coleção OS Pensadores, tradução de Anoar Aiex.São Paulo:Nova Cultural,1999.
REALE, Giovanni ; ANTISERI,Dário. História da Filosofia – Do Humanismo A Kant vol.2.10. ed. São Paulo: Paulus,2007.
BALIEIRO, M., Essa mistura terrena grosseira: filosofia e vida comum em David
Hume. 2002 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em <http://www.fflch.usp.br/df/site/posgraduacao/2010_doc/2010.doc.Marcos_Baliero.pdf> acesso em 12.out.2010

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